Lendo este post do blog Depoimento Anônimo, lembrei-me do (longo) tempo em que trabalhei no interior do estado. Nos primeiros anos, tinha escolhido trabalhar na Seção de Homicídios e Entorpecentes. Éramos duas seções em uma, pois 99% dos homicídios da cidade eram ligados ao tráfico de drogas. Cerca de 25 mortes por mês.
Investigar homicídio é a melhor função na Polícia Civil, é um dos trabalhos mais prazerosos quando temos sucesso (só perde para sequestro, mas essa eu ainda não experimentei). Mas não esses homicídios do tráfico. Raramente se consegue reunir provas, todo mundo tem medo ou se favorece com o tráfico de drogas, ninguém te dá informação. E quando você conclui uma investigação e vai prender um assassino, descobre ele mesmo já foi assassinado por sua própria quadrilha, ou morreu em confronto com policiais. Um saco.
Mas, replicando o tema do Depoimento Anônimo, lembrei-me de uma investigação passada. Um traficante de uma determinada favela estava em casa, com sua mãe, duas irmãs, cunhado, prima, primo, cachorro e papagaio. Eis que traficantes de outra quadrilha cercaram a casa para matá-lo.
Cheguei ao local por volta de 3 da madrugada. A casa de alvenaria parecia um queijo suíço, tinha mais buraco que parede. O traficante e a mãe estavam internados na CTI do hospital local, ambos baleados. As duas irmãs, cunhado, prima, e primo estavam mortos, espalhados (literalmente) pelo chão da casa. Até o cachorro foi alvejado por dois disparos, e o papagaio deve ter fugido, já que não encontramos o corpo.
Após a perícia no local, fui para o hospital, com um formulário de depoimento em mãos, prancheta e caneta. Não sabia se o criminoso-vítima resistiria aos ferimentos, e não quis arriscar. Fomos eu, e o então chefe da minha seção.
O bandido baleado deu informações, e apontou apelidos dos autores. Voltei na Delegacia, peguei as fotos deles em nossos arquivos (já eram figurinhas conhecidas), e segui novamente para o hospital. Colhi as declarações com detalhes da investida criminosa, e fiz o reconhecimento por foto dos criminosos. Beleza, era só indiciá-los, ouvir mais umas testemunhas, juntar algumas provas que eu já tinha conseguido, e pedir a prisão. Trabalho rápido e eficaz.
Na semana que se seguiu prendemos uns 5 bandidos, relatamos o inquérito, o promotor pediu a prisão preventiva, e me esqueci do caso.
Um ano depois, de todos esses personagens, apenas eu e os presos estávamos vivos. O criminoso-sobrevivente e sua mãe tiveram alta hospitalar, se recuperaram, e foram mortos no estado do Espírito Santo meses depois. O meu chefe foi assassinado por 3 PMs em uma festa junina, com direito a “tiro de confere” e tudo no meio da multidão (esse é outro caso, nós investigávamos um grupinho de extermínio deles, outro dia eu conto).
Fui convocado para depor como testemunha de acusação, no Tribunal do Júri local. Já tinha ido depor três vezes na audiência de instrução, e apontado o dedo na cara dos marginais reconhecidos. Fui ouvido, eu e mais dois policiais militares da P2. Confirmei tudo que tinha investigado, confirmei que, em vida, o criminoso-vítima tinha reconhecido por foto os réus que estavam ali em plenário. Aliás, nem todos, já que dos cinco, só dois ainda estavam vivos.
Ao final a surpresa. O criminoso-vítima e sua mãe, depois que saíram do hospital, tinham sido chamados a depor, e disseram ao juiz que era mentira que tinham feito o reconhecimento por foto no hospital, que eu e meu chefe que inventamos essa estória; mesmo tendo eles assinado o auto de reconhecimento, com testemunhas. Meu ex-chefe jazia em uma gaveta de cimento armado na parede do cemitério local, e não podia confirmar minha versão. Ficou minha palavra contra a dos bandidos, que se diziam inocentes, e da própria vítima.
Findo o Júri, os dois foram absolvidos. E eu, voltei, já resignado, para casa na capital, imaginando quanto tempo levaria para que os dois absolvidos fossem mortos por aí. No fim das contas, contabilizei uma vitória pessoal: uma boa investigação. Missão cumprida.