Charlie sempre trabalhou em plantão de delegacias distritais, e recusava-se a tomar parte na divisão do dinheiro proveniente do "jogo do bicho" recebido pela DP. Era um cara meio enjoado mesmo, mas era justo em suas decisões. Analisava a situação, e não apenas a fria narrativa dos fatos, para decidir se alguém, policial ou não, ficaria preso em flagrante ou responderia à inquérito em liberdade. Não admitia situações forjadas. Quando podia esclarecer melhor as coisas, ajudando envolvidos em ocorrência, o fazia com esmero.
Na primeira madrugada após a determinação da Secretaria de Segurança, moradores de uma favela próxima à DP incendiaram um ônibus, protestando contra a morte de um suposto estudante. Oito pessoas foram detidas e conduzidas por militares para a delegacia, para que fossem autuadas.
Após ouvir os relatos, Charlie entendeu que aquelas pessoas haviam cometido um crime sim, mas não havia indícios que comprovassem seu envolvimento com o tráfico de drogas, por mais que tenhamos convicção de que todas as manifestações de protesto "da comunidade" são ordenadas pelos traficantes locais. O povo não se revolta. Simples assim. Só cumprem ordens.
Foram autuados por incêndio criminoso, cuja pena de reclusão varia de 3 a 6 anos, e, por se tratar de veículo de transporte coletivo, é aumentada de 1/3. Nada leve. Mas não satisfez os policiais que conduziram a ocorrência, e que informaram o comandante do batalhão sobre a decisão do delegado.
Logo em seguida recebeu ligação do titular da DP, que o mandou lavrar o flagrante de associação para o tráfico, conforme determinado pelo Secretário. Recusou-se, alegando que o entendimento dele fora outro, e que era sua decisão, posto estar de plantão e responder pela circunscrição. Recebeu depois ligação do Chefe de Polícia, determinando que os conduzidos fossem autuados por associação para o tráfico, como queria o Secretário. Recusou-se. Recebeu então ligação do próprio Secretário, que, irritado, exigia que sua vontade fosse cumprida. Recusou-se, alegando que fora investido no cargo para cumprir a lei, e não vontades políticas.
Passadas algumas horas, o delegado titular foi até a DP, muito contrariado pois tivera que sair de um animado churrasco. Refez o flagrante, autuando todos por associação ao tráfico. No fim da mesma semana Charlie foi transferido para o interior do estado, 350Km de distância da capital.
Lá passou a cumprir sua escala de plantão, indo e voltando pela BR-101. Até que, dois meses depois, recusou-se a prender em flagrante por determinado crime, um desafeto do delegado titular local, autuando-o por crime menos grave, e que de fato fora o praticado. No dia seguinte, foi transferido para outra delegacia no interior, desta vez a 200Km de distância da capital.
Quando lá estava, foi intimado para comparecer à Corregedoria interna, já que estava respondia à uma sindicância administrativa por ter deixado de autuar os incendiários por ligação com a traficância local. Chegou para depor irritado, indignado, diante da injustiça da punição que lhe poderia ser imposta.
Na mesa da delegada da corregedoria, duas pilhas de sindicâncias. Charlie perguntou:
- Vou ser punido porque me neguei a cometer uma ilegalidade?
- Bom, está vendo esta pilha de sindicâncias aqui? Todas são para punir delegados que se negaram a indiciar incendiários por associação ao trafico.
- Complicado - disse Charlie - mas pelo ao menos não sou só eu que penso assim.
- Mas, está vendo esta outra pilha de sindicâncias aqui? - perguntou, concordando com Charlie.
- O que tem ela?
- São para punir delegados que autuaram em flagrante pessoas que incendiaram ônibus durante protestos, por associação ao tráfico de drogas...